Resenha: Charivari – Tripa Seca

gravura em estilo medieval com o título do disco centralizado no topo

Reprodução da capa do álbum (© Super Discos; arte por Mariana Cardim e Renato Martins)


Três anos depois de sua estreia explosiva e autointitulada (clique aqui para conferir minha resenha a respeito), em que rock, MPB e música latina colidem com a mesma violência das partículas que saíram do Big Bang, o “supergrupo underground” Tripa Seca (Renato Martins (vocais, guitarra), André Paixão (vocais, guitarra, teclados), Melvin Ribeiro (baixo) e Marcelo Callado (bateria, percussão)) retorna nesta reta final (será?) da pandemia com um aguardado sucessor.

Neste segundo lançamento, Charivari, a experimentação com sons, a densidade, as mudanças bruscas de estilos e a velocidade de algumas faixas criam um caos paradoxalmente organizado que alude ao título da obra – “charivari” era um tipo de desfile medieval em que a meta era fazer o máximo de barulho possível, independentemente do som resultante virar música ou não.

Neste trabalho aqui, indiscutivelmente a cacofonia virou música. E música das boas. Não tem uma vez que eu escute este disco que eu não fique bestificado diante da polidez do som, da “envolvência” dos ritmos e do bom gosto dos arranjos.

Algumas peças caminham para o indie rock, como a abertura “Supernova” (Renato Martins, Marcelo Callado), “Pessoas Loucas” (André Paixão, Marcelo Callado), “Feitiço do Tempo” (Marcelo Callado) e a “tripasequisticamente” irreverente “Não Peida no Amor” (idem). A explosão do indie e a casualidade das letras dão certo aqui – e isto está sendo dito por alguém que tem pouca paciência para tudo que gira em torno da palavra “indie”.

Outras adotam uma roupagem inesperadamente árida, quase country, como em “Dois Pesos e Duas Medidas” (Melvin, André Paixão, Marcelo Callado) e “Em Voga” (Marcelo Callado, André Paixão), que nos transportam para os desertos norte-americanos ou quem sabe para o sertão nordestino – de onde você jura que o grupo vem até descobrir que são de origem carioca.

O carro-chefe do trabalho, “Que Dia” (Renato Martins), destoa muito do restante da obra, mas mesmo assim ganhou um clipe. Eu teria escolhido praticamente todas as outras músicas antes desta para virar um clipe, mas há quem se apaixone pelo clipe tanto quando os personagens retratados.

Charivari é álbum merecedor de condecorações de fim de ano e essa coisa toda, com direito a participação em trilha sonora de novela da Globo e tudo (pela força e pela brasilidade das canções), mas o Tripa Seca parece ser aquele tipo de banda que já se sente extremamente realizada só de lotar uma modesta casa de shows com os fãs mais fiéis. Motivos para celebrar, estes últimos certamente têm.

Avaliação: 5/5.

Abaixo, o clipe de “Solstício de Inverno”:

* A resenha foi escrita após sugestão da assessoria de imprensa da banda.

Resenha: Unlimited Love – Red Hot Chili Peppers

foto de uma placa-logo em neon com o nome da banda em verde e o nome do disco em amarelo (unlimited) e vermelho (love), tudo sobreposto ao símbolo da banda

Reprodução da capa do álbum (© Warner Records)

Uma das últimas boas notícias que nos agraciaram antes da pandemia de COVID-19 se abater sobre o mundo foi a volta do guitarrista John Frusciante ao quarteto estadunidense Red Hot Chili Peppers – de onde ele não deveria sair, mas vive saindo. Não que o seu mais recente substituto, Josh Klinghoffer, não estivesse à altura da missão. Mas quem estabeleceu o som do RHCP desde o final dos anos 1980 é a formação clássica de John, Anthony Kiedis (vocais), Flea (baixo) e Chad Smith (bateria). O resto foi, se muito, experimentalismo.

E o que os rapazes têm para nos oferecer nesta terceira temporada da formação? Bem, nada menos que 17 músicas. Num disco – de nome Unlimited Love, ou “Amor Ilimitado” em tradução livre – que sequer é duplo. E ainda tome uma 18ª faixa para os japoneses!

A abertura e primeiro single, “Black Summer”, deu até um calorzinho no coração logo nas primeiras notas, pois sabíamos que quem manejava aquela guitarra era, inconfundivelmente, John Frusciante. É uma canção que resume a essência do Red Hot do século XXI. Houve quem dissesse, jocosamente, que ela soava como uma “sobra” do Californication (1999). Não estão errados, mas… e se eu expusesse aqui o incômodo fato de que até uma sobra do RHCP ainda é melhor do que metade do que vem sendo lançado por aí?

Bom, voltando a falar da obra como um todo: daqui para frente, temos uma jornada com poucas surpresas. Um sentimento fortíssimo de nostalgia, pois parece ser algo que eles lançariam entre o By the Way (2002) e o Stadium Arcadium (2006). Mas uma jornada que uma hora cansa. Falarei disso daqui a pouco nesta resenha.

Antes, quero abordar as poucas, porém relevantes surpresas. A primeira é “Not the One”, canção suave marcada pelo piano, instrumento que o baixista Flea vem tocando com certa frequência e que tem trazido um bem-vindo novo elemento ao som do quarteto. Não está no nível de uma, digamos, “Even You Brutus?”, mas homenageia bem a era Josh. “Bastards of Light” faz a mesma coisa, desta vez incorporando teclados de um jeito que deixaria Danger Mouse (produtor do lançamento anterior, The Getaway (clique aqui para conferir minha resenha a respeito)) com um sorriso no rosto.

Sua sucessora, “Poster Child”, poderia ter saído do One Hot Minute (1995), único trabalho de estúdio do grupo com o guitarrista Dave Navarro. Talvez porque ela tenha me lembrado muito “Walkabout”. “White Braids & Pillow Chair”, por sua vez, transcende dimensões guitarrísticas criando um nível de sofisticação que a tornaria uma possível peça do Stadium Arcadium.

A tríade final (incluindo a faixa bônus) é toda fora da casinha: “The Heavy Wing” nem tanto do ponto de vista instrumental, mas sim porque tem uns bem-vindos vocais de John. “Tangelo” por ser uma levíssima balada em compasso ternário. E a bônus “Nerve Flip”. pesada, suja, crua, enfim, grunge no seu ápice. Um tributo à primeira passagem de John.

Ao lançar “Black Summer”, a banda descreveu Unlimited Love como “o passeio que é a soma de todas as nossas vidas”. Não posso confirmar isto por não conhecer tanto a vida deles, mas posso garantir que, se fosse “o passeio que é a soma de toda a nossa discografia”, aí eu concordaria sem pestanejar, mesmo achando que dava para ter feito isso com menos canções.

E talvez esteja aí o único defeito relevante do trabalho. Será que precisava mesmo de 18 faixas? Se sim, por que não dividi-las em dois discos de um álbum duplo, com um critério minimamente claro para a separação? Ou quem sabe fazer como no I’m With You (2011; clique >aqui para conferir minha resenha a respeito) e lançar sobras às dezenas? Diferente do que o título sugere, nem tudo precisa ser ilimitado.

Na verdade, mesmo com esta fartura toda, ainda não deu pra escoar tudo: os caras foram para o estúdio Shangri-La do produtor Rick Rubin com cerca de 100 músicas escritas e saíram de lá com metade delas gravadas. O resto pode virar um festival de lados b ou quem sabe até um disco novo. Mas eu aposto que dava para ter feito uma curadoria mais conservadora para este lançamento aqui.

Que a gente ansiava muito por esta reunião, nem se discute, mas quase 20 composições de uma vez? Rick poderia ter se imposto mais e aparado os excessos. Às vezes, a missão de tirar o melhor dos músicos significa também não tirar tudo até a última gota. Eu senti até certa dificuldade fazendo a resenha, pois quando chegava nos últimos minutos eu já não estava mais tão focado quanto nos primeiros. Uma ópera rock de 70 minutos é uma coisa, um compêndio de quase 20 faixas que parecem quase todas extraídas de uma mesma jam é outra.

Apesar disso, Unlimited Love já é um dos discos do ano e declara da forma mais cristalina possível que o Red Hot está de volta. Se tinha uma coisa “vintage” que precisávamos que fosse ressuscitada, era a formação clássica da lenda californiana.

Avaliação: 4/5.

Abaixo, o vídeo de “Black Summer”:

Resenha: Marriage – Deap Vally

foto da dupla em uma varanda. Ambas estão sentadas. Uma piscina aparece abaxo delas, claramente como numa montagem. O nome da dupla aparece na parte de cima da moldura da foto e o do lbum, abaixo

Reprodução da capa do álbum (© Cooking Vinyl)

Depois de um disco colaborativo com o The Flaming Lips, a dupla estadunidense Deap Vally vem com mais um lançamento em que as duas integrantes não reinam solitárias: Marriage, o terceiro registro de estúdio delas (sem contar a parceria supramencionada).

Com muitos “feats”, o trabalho expande o som explosivo do duo para algo um tanto mais complexo que não mais se adequa necessariamente ao rótulo de “Led Zeppelin encontra The White Stripes” que se costumava dar ao grupo californiano. Contudo, essa complexidade também diluiu o seu característico vigor.

A mudança é a solução encontrada por elas para adoçar uma relação amargada pelos anos de convivência – daí o título do álbum, que significa “Casamento” em inglês e traduz a relação profissional entre Lindsey Troy (vocais, guitarra) e Julie Edwards (bateria).

Peças como “Perfuction”, “Billions” e “Better Run” retêm, em maior ou menor grau, os dois elementos mais importantes da banda: a energia e a crueza. E é aí que as três estrelinhas desta resenha residem. É aí que os pontos fortes dessas minas ficam.

Mas quase todas as músicas trazem certa dose de experimentação, em grande parte garantida pelas participações de nomes como KT Tunstall, Peaches, Jennie Vee, Ayse Hassan, Jenny Lee Lindberg e Jamie Hince. Essas intervenções não chegam a roubar o suprassumo da dupla, mas são um tanto aventureiras demais em momentos como “Give Me a Sign”, “Where Do We Go” e “Look Away”, que perdem o gás e fazem sentido talvez só para quem esteve lá, na concepção das canções.

Ou talvez para quem tem mente muito aberta para aceitar uma mudança um tanto abrupta na sonoridade das meninas. Talvez este disco envelheça bem e talvez seus sucessores tenham um som mais seguro, mas os dois lançamentos anteriores ainda soam mais Deap Vally do que este.

Avaliação: 3/5.

Abaixo, o lyric video de “Perfuction”: